quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Bagatela

"Amor é quando mamãe vê o papai suado e mal cheiroso e ainda fala que ele é mais bonito que o Robert Redford." – Chris, criancinha americana avulsa, 8 anos.


Esta é uma história de amor. Ou sobre o amor? Tanto faz. Amor não faz sentido, mesmo. E, por isso, ela também não precisa fazer e tem todo o direito de estar confusa e embaralhada. Amém.


IV


Decidiram que não se veriam mais.

Mas o que fazer, então, daquele amor? Aquela vontade súbita e inapropriada de olhar o cheiro, cheirar as mãos, tocar os olhos, cheirar a boca de quem se ama. Nada é pior do que um amor mal amado, pensaram enquanto voltavam para suas vidas de lágrimas e solidão. Estavam abafando aquele sentimento, mas era impossível fazê-lo deixar de existir. Então, a fim de se consolarem, inventavam para si que tudo o que viveram não tivera valor algum, que foi só uma besteira de pouca relevância e logo passaria. Mas não funcionava. Saíram do bistrô arrasadas, com os corações destruídos e a certeza de que seriam infelizes para sempre. E ao chegar a casa essa certeza só estava mais viva dentro delas.


E a certeza da infelicidade é de uma natureza estranha, que te consome e te leva a espasmos de abstinência terríveis. Não era mais possível viver daquela forma. Porque depois que se descobre o quão extraordinário e simples é ser feliz, torna-se intragável ser de outra maneira que não esta. Ser feliz parecia agora uma obrigação para Eugênia. E por isso, quando seu marido chegou, ela já havia decidido. Disse que queria se separar. Pensou em contar que seu coração pertencia à outra pessoa, que seu coração finalmente pertencia a alguém, mas não havia motivo para aquilo. Estaria sendo um tanto quanto sádica ou então nem seria ouvida dentro da lógica de indiferença daquela relação frígida, quase austera. Não arrumou malas, não falou em partilha de bens, só uma coisa importava naquele momento e o resto podia esperar. Ligou o carro e foi ser feliz para sempre.

Correu atrás de Leninha. E caminharam juntas, lado a lado, pelas ruas próximas ao apartamento dela, com a cabeça erguida e as almas repletas de paz. Não sabiam exatamente o que as esperava, mas sentiam-se prontas e seguras para enfrentar o mundo caso fosse necessário. Juntas, era como se o impossível não fosse. Mesmo que ainda não conseguissem compreender o que sentiam e porque sentiam. Mesmo que suspeitassem que talvez nunca conseguiriam entender. Amor tem a ver com sensibilidade e não entendimento. E por terem entendido isto é que aquelas duas podiam finalmente gozar de seus meandros.


II


“Quando for de verdade, você vai saber”, sua mãe dizia. “Quando o homem certo chegar, você vai sentir, minha filha. O frio na barriga, o calor no coração, a vontade estranha de estar sempre junto e que só faz crescer e crescer...” Guardou aquelas palavras como se fosse uma receita do que era o amor. Mas o tempo e os namorados iam passando e nada acontecia. Como se a fórmula estivesse errada, ou não servisse para ela. Forjara um casamento perfeito então, uma felicidade compromissada, com o homem que mais lhe pareceu aproximar-se da receita. Porque nunca amou ao marido. E agora os dois estavam cada vez mais distantes, e Leninha e ela mais próximas. Havia algo de errado naquilo?

Sim, havia. E inconscientemente, as duas sabiam que havia. Estava o tempo todo nas entrelinhas, nos olhares das pessoas vez ou outra, quando andavam abraçadas, nos comentários maldosos que começavam a circular como se tivessem vida própria dentro do asilo. Afinal, todo mundo é adestrado a amar da maneira certa. A todo o momento somos desencorajados a amar errado, de forma ilícita, abrupta, como se fosse vergonhoso, como se realmente o amor fosse intransigente. E as duas não eram diferentes de ninguém. Tinham seus próprios freios morais. Mas não queriam parar. Na verdade, as coisas se sucediam de maneira natural e, quando é assim, a gente não para pra pensar nos absurdos e se deixa levar.

Começaram a reparar mais uma na outra, então: o cabelo, o sorriso, a forma de falar, as roupas que usavam, os trejeitos, os gostos. Tudo era decorado como que por osmose, sem esforço algum. E brigaram. Sim, passaram a brigar feio, vez ou outra. Porque discordavam, porque agiam de maneira que a outra não conseguia entender, porque tinham pontos de vista diferentes. E porque descobriram que a melhor parte de uma briga é a hora de fazer as pazes.

E de repente quiseram saber tudo uma sobre a outra. Seus defeitos, suas manias, as coisas mais tortuosas e detestáveis que já haviam feito na vida. Conhecer apenas a parte boa não era mais o suficiente. Eugênia buscava Leninha no trabalho, depois do expediente, e as duas tomavam água de coco e caminhavam na praia. Leninha adorava dar presentes surpresa para Eugênia. Uma flor, um brinco novo, aquele par de sapatos que ela adorou, um jantar ou um almoço num lugar especial. E como que por mágica, sentiam a falta. Sentiam o peito apertado. Sucumbiam a qualquer ligação, email ou sms no meio do dia que fosse. A vontade de estarem juntas era tão latente que de vez em quando sufocava, e elas se viam dominadas por aquilo.

Já era amor.


I


Tudo começou de uma maneira inesperada.

Leninha vinha de uma relação desastrosa, cheia de neuroses, anseios e expectativas não correspondidas. Não terminou aquele namoro, ela fugiu dele, sempre brincava. E fugiu mesmo. Um dia acordou e deixou para trás emprego, casa, carro, e foi inventar uma vida nova em outro lugar. Era movida a isso. A essa mania de viver de ímpetos, de deixar lacunas, coisas inacabadas. Não havia encontrado ainda algo ou alguém que de fato a fizesse ficar. Gostava de tudo muito intenso: trabalhava como uma operária inglesa do século dezenove, fumava como uma louca e ficava pra morrer se alguém sujasse uma canastra de ases diante dela. Levava muito a sério esse lance de jogar baralho... E às vezes chorava. Chorava sozinha e quase em silêncio, tentando esconder de si mesma aquela aflição, para não enlouquecer na espécie de ausência de tudo na qual vivia. Viver de maneira insular e itinerante ia lhe cansando aos poucos.

Eugênia, ao contrário, não era de fugir: ficava e aguentava. E era isso que vinha fazendo nos últimos anos da sua vida. Aguentando firme um casamento perfeito. Ah, a perfeição! Como ela era desagradável e mentirosa... E acomodar-se nela era como viver pisando em formigueiros. Servia de objeto de adorno para o marido, mas detestava a falsidade e a futilidade das madames ricas, cujo comportamento precisava reproduzir. Desde criança, sempre quis ser livre para viver como bem entendesse, não sendo controlada por regras de etiqueta, ou o que quer fosse e agindo para agradar os outros, como faziam aquelas pessoas que a cercavam. Às vezes pensava que o problema não era dele, do marido, mas sim dela. Talvez a coisa fosse mais genérica, nada pessoal. Não fosse com ele, o incomodo seria algum outro em qualquer outro homem. Mas ainda assim, ela permanecia ali, naquela vida perfeita, uma perfeição estéril, sem graça. E às vezes chorava. Chorava esperando por um motivo que a fizesse ambicionar sair daquela inércia. Era uma dessas pessoas que precisam de alavancas.

Mas duas vezes por semana, e em fins de semana alternados, as vidas daquelas mulheres que costumavam chorar sozinhas passaram a se cruzar. Crianças tinham o dom de curar todo tipo de mal, dos mais obscuros, inclusive. Ajudar fazia bem. E no fundo, a maioria das pessoas que fazem caridade está sempre buscando a mesma coisa que elas: sentir-se melhor consigo mesmo. E por isso não se culpavam. E ajudavam naquele orfanato com a dedicação e o afinco de quem luta para salvar-se.

No início não se falavam muito. No máximo, um “bom dia” aqui, um “quer ajuda?”, acolá e mais um “até semana que vem”, acompanhado de um sorriso amarelo. Mas isso mudou, quando, certa vez, uma garotinha cismou que queria ouvir mais uma estória antes de dormir, no que Eugênia atendeu e foi severamente repreendida, aos gritos, para quem quisesse ouvir. E resignou-se. Mas Leninha, que assistira a tudo, não podia deixar aquela grosseria passar em branco. Discutiu com a funcionária, para defender a quase desconhecida e por pouco não se estapearam. E as duas, então, Eugênia e sua defensora brigona, foram convidadas pela diretora do orfanato a não aparecerem mais. Para não confundir a cabeça das crianças com indisciplinas, ela disse. Leninha ficou meio sem graça, a culpa havia sido toda dela. E Eugênia chorou. O que faria agora, sem a válvula de escape que a mantinha de pé? Chorou na frente daquela desconhecida que, tecnicamente, havia defendido-a de uma injustiça, mas que, na prática, acabara de lhe tirar qualquer perspectiva de vida com alguma verdade. Ela nada disse, mas aquele choro pareceu tão família a Leninha, que ela o compreendeu mudo assim mesmo. E a convidou para tomar um café, ou algo mais forte se fosse o caso.

Quando conseguiu parar de chorar, Eugênia lamentou-se por ser tão média, a ponto de ser dispensável. E Leninha a consolou. Lera certa vez que “o medo de amar é a porta que nos tranca no castelo da mediocridade.” Além de brega, achou a frase equivocada. Qual o problema em ser medíocre? Nunca entedera bem essa aversão das pessoas a mediocridade. As duas riram, uma gargalhada de anuência por parte de Eugênia ao que havia sido dito. E a partir dali, conversaram a tarde inteira. E descobriram que tinham mais coisas em comum do que a idéia de que é absolutamente aceitável ser mediano num mundo dominado por pseudo-brilhantismo. E todas as tardes passaram a sair e conversar. Procuraram outro lugar em que pudessem ser úteis, passaram a marcar presença em um asilo, era tão confortante quanto ajudar às crianças. No fim da tarde, iam ao cinema, tomavam sorvete, gostavam dos mesmos filmes, mas de sabores diferentes. Sorriam, dividiam, prestavam-se atenção. E mais: as duas tinham a solidão como melhor amiga. Mas de maneiras distintas. Solidão a dois é mais doída. Nisso, Leninha e Eugênia concordavam. A primeira estava em vantagem, então, por não ter um marido que não era seu cúmplice. Um marido que lhe era estranho.

Algo crescia dentro delas. Uma cumplicidade que nunca havia existido antes com outras amigas. Não era bem amizade o que sentiam. Mas como poderiam discernir, se aquilo que começava a brotar de dentro delas era inédito às duas? Leninha era a rainha das paixões, dos enganos, dos frios na barriga passageiros. Enjoava e perdia o encanto meio que depressa demais, alguns a chamariam até de leviana. Amor, amor de verdade, aquilo que fica quando a paixão se vai, ela nunca tinha experimentado.

E o que dizer de Eugênia? Quando era menina, sempre indagava a mãe acerca do amor. “Quando for de verdade, você vai saber.”


III


Já era amor.

Sim. Porque quando se conhece o lado mais obscuro de alguém e ainda assim se deseja estar junto, só pode ser amor. E tudo o que elas viveram até ali, agora fazia sentido, tinha funcionado como uma espécie de preparativo para o que estava por vir. A solidão fez as malas e se foi. Quase no mesmo dia em que o marido de Eugênia anunciou que passaria o fim de semana fora, a trabalho. Ligou para Leninha e sugeriu que fizessem algo. Combinaram de assistir filmes, fazer as unhas e jogar cartas em seu apartamento. Abriram um vinho, após a terceira partida e decidiram ligar o aparelho de som. Beberam e dançaram por horas. E antes que a música terminasse, Leninha pediu a Eugênia que ficasse para dormir.

Não queriam dormir, aquela noite deveria durar uma eternidade, mas como isso não era possível, mantiveram-se despertas e celebraram a sorte de nunca terem se encontrado. A música que soava era convidativa e as duas resolveram dançar. Sim, Eugênia e Leninha colaram os rostos e dançaram juntas. Sentiam os corpos uma da outra, a respiração ofegante, o calor, o hálito de vinho, as palavras ditas ao pé do ouvido levemente embriagadas. E foi a vez de Leninha chorar diante de alguém pela primeira vez. Confessou que, para ela que sempre viveu sem vínculos e nunca se sentiu presa a nada, era estranho agora está tão envolvida com alguém. As palavras saíram quase sem querer. O álcool pode ser libertador neste sentido. Eugênia a consolou e elas se abraçaram forte. Disse-lhe que agora tinham uma a outra. E Leninha sussurrou e seu ouvido não tinha vontade de ir embora. Nunca mais. Pegaram no sono ali, abraçadas com a certeza de que eram a pessoa mais importante do mundo para outrem. Quando a ressaca a acordou, Leninha estava sozinha na cama. Eugênia se foi sem se despedir, tentando compreender o que se passava. Não se falaram e nem se viram durante uns dias. Era melhor pensar um pouco mesmo durante algum tempo sobre o que fazer, como agir agora, para não arruinar tudo o que estava acontecendo. Ou para dar um basta antes que fosse impossível recuar.

Mas o mesmo amor que confunde e desgoverna, é o que faz tudo ter significado e estar em seu devido lugar. Na terça, quando se encontraram no asilo, não precisaram dizer absolutamente nada. O vento varreu as palavras e a saudade calou as dúvidas. Queriam-se do jeito que dava até que pudessem ser uma da outra plenamente. E mesmo que esse dia nunca chegasse, não importava, o amor se contenta com pouco, quando não há muito que possa ser feito. Então, ao saírem do asilo, foram ao teatro, jantaram juntas e despediram-se prometendo nunca mais passar um dia sequer sem se ver ou se falar.

E como numa bagatela, breve e despretensiosa, mas que cola nas nossas cabeças e corações e nos arrebata de maneira única, as duas estavam unidas por aquele sentimento de maneira irreversível. Mas havia espaço no mundo para aquele tipo de amor transgressor? Encarariam as pessoas e as coisas em nome daquilo que sentiam? Encarariam a si mesmas? Teriam estômago para enfrentar o fato de serem vistas como anormais, despudoradas, ter os seus comportamentos julgados como doentios? Não. E o problema maior não era aguentar os problemas gerados para si mesmas. Mas, acima de qualquer coisa, não suportariam ver uma a outra sofrer e ser massacrada daquela maneira. No dia seguinte, depois do expediente de Leninha, encontraram-se no bistrô onde tiveram a sua primeira conversa meses atrás, quando foram expulsas do orfanato, e conversaram sobre tudo isso, sempre procurando as palavras certas para tornar o menos doloroso possível aquele momento. Quem via de longe não entendia aquelas duas mulheres ali, chorosas, conversando baixinho de mãos dadas, tentando disfarçar a dor que sentiam pela decisão que estava sendo tomada.

Decidiram que não se veriam mais.

3 comentários:

  1. Narrativa estilo Almodovar em "A pele que habito". O texto não soou tão lésbico quanto talvez se poderia pretender.

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  2. "o amor se contenta com pouco, quando não há muito que possa ser feito" = VERDADE" ; )

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