segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Epílogo

Ela estava ali, ao lado de Luma, rindo com um canto da boca, aquele ar sarcástico. Mas não parecia mais melancólica. E realmente não estava. Era sua auto-estima. Encarava Luís Carlos como quem encara um algoz. Ele notou que havia ainda algo a mais de diferente naquela mulher, desde a última vez em que se viram. Parecia que faltava algo. E realmente faltava. Era a tristeza. Um belo dia ela fez as malas e se mandou. Como quem sai pra comprar cigarros e não volta nunca mais.

Porque tudo na vida é passageiro. Por mais avassalador que seja o estrago, mais dia, menos dia, passa.

Com tantos bancos naquela porcaria de cidade, teria sido uma feliz ou desgraçada coincidência encontrarem-se ali? Luís Carlos ficara tão aflito com aquele encontro que nem se lembrou que os dois eram clientes do mesmo banco. E da mesma agência. Nem boa nem ruim. Coincidências, às vezes, são apenas coincidências. Pensou em fingir que não a tinha visto, na presente conjuntura era o melhor a fazer. Mas a vontade de se aproximar era muito mais forte. Ela estava tão mudada. Tinha algo de radiante, de convidativa. Exalava um sei lá o quê confiante, que inebriava. E isso era tão violento, que o fato dele tê-la magoado vorazmente outrora não foi relevante para freá-lo. Ainda que o medo da rejeição e do desprezo fosse latente.

Porque por mais que quem esbofeteie deslembre-se, sabe muito bem que levar um tabefe é sempre inesquecível.

Montou, então, um filme em sua cabeça de como agiria. Esperaria ela terminar de pagar a conta no guichê, se aproximaria, e chamaria por seu nome. “Luma? Luma, querida, você por aqui?” Não, não... Sem o “querida”. Sem o “você por aqui” também, que mais parecia cantada de botequim de quinta. “Luma? Tudo bem? Lembra de mim?”. Não, idiota demais. Como alguém poderia esquecer um ex-marido? E esse tipo de abordagem ficaria muito artificial, de qualquer maneira que fosse feita. Decidiu que esperaria por ela do lado de fora do banco e quando ela saísse apenas sorriria. Já estava se levantando, quando o funcionário do banco chamou por seu nome. Alto e nitidamente. Como que atendendo a um reflexo, ela virou-se. E os dois se entreolharam. Maldita idéia aquela de ir pedir empréstimo. Maldita mania de querer que tudo saia como fora esquematizado.

Porque poucas coisas são mais deliciosamente frustrantes do que um plano que sai pela culatra.

Na porta do banco conversaram um pouco, após um abraço meio sem jeito. Não foi culpa dele. Tudo caminhou naturalmente para aquele comentário chavão:

— Você tá tão diferente...

— É, estou. — “É estou?” Quem respondia esse tipo de observação dessa maneira? A nova Luma respondia! Ele esperava no máximo um “Você acha?” ou “Pra melhor ou pra pior?”, ou ainda quem sabe um “Ah, tanta coisa aconteceu...”. Mas um “é, estou” foi realmente perturbador. Cada frase dita por ela era um pasmo. Ele não sabia mais o que esperar, nem como agir.

Olhou o relógio e disse que precisava ir embora. Luís Carlos respirou fundo e sugeriu um encontro. Era tudo ou nada:

— Pra gente conversar melhor, tanto tempo sem se ver... Se você quiser, é claro...

— Por mim tudo bem...

— Terça, então?

— Quarta, prefiro quarta... Quarta, às oito horas, está bem?

— Tudo bem, quarta, às oito...

Por ela tudo bem? Ela proferia aquelas palavras de uma maneira singular. Não brotava mágoa ou rancor dali. E tampouco estava eufórica e cheia de firulas como ele. Luma estava absolutamente alheia a Luís Carlos.

E isso estava o massacrando.

Porque entre o amar e o odiar, nada incomoda mais que a apatia.

Despediram-se. Luma atravessou a rua e dirigiu-se ao ponto de ônibus. Luís Carlos precisava de um café.

Com conhaque.

...

O telefone do pequeno apartamento onde Luma e Luís Carlos viviam, tocou. Ela correu da cozinha para atender, pois ele estava vendo o jogo e, quando estava vendo o jogo, detestava ser incomodado. Aliás, ele detestava ser incomodado sempre:

— Alô?

— Quem tá falando?

— É a Luma... Quer falar com quem?

— Luma? Que Luma? É da casa do Luca?

— É sim senhora...

— É a mãe dele?

— Não, é a esposa dele... Quem quer falar?

— Esposa? Que história é essa de esposa, sua piranha?

— Como?

— Quem tá falando aqui é a namorada do Luca! Que história é essa de esposa?

Abafou delicadamente o telefone com a mão. Dirigiu-se ao marido, com a banalidade de quem oferece um chá. A velha Luma era assim: sempre contida, com movimentos e gestos calculados. A última coisa que queria era aborrecer o marido:

— Querido, é pra você...

— Quem é, Luma, tô vendo o jogo...

— Sua amante.

— O quê?

— Sua amante. Disse que é sua namorada, mas isso é impossível. Só pode ser sua amante, então.

Negou tudo. Desligou o telefone e negou tudo. Mas um jogo duplo é realmente fascinante exatamente por isso: Uma hora ou outra, ele vem à ruína, por mais perfeito e sob o controle que possa parecer. Em dois dias, a amante de Luís Carlos voltou a ligar e as duas marcaram um encontro. Como aquele homem a quem ela amava e servia com a fidelidade de um cachorro, pôde ter-lhe sido tão execrável? Um casinho extraconjugal sem importância ela até poderia engolir. Engolia sapos muito maiores em nome daquele amor: a indiferença, os vícios, as manias, o temperamento dele... Mas montar apartamento para outra, comprar aliança, pedir em noivado aos pais, apresentar aos amigos que frequentavam sua casa e a quem ela servia cerveja e salgadinhos nos domingos de jogo, era patológico demais até para ela que mantinha aquele casamento como se sua vida dependesse disso. Renunciara a tanta coisa por acreditar naquilo.

Até a si mesma.

E por amá-lo dessa maneira quase que definitiva, Luma fez com que ele escolhesse uma das duas. Mas ele a escolheria, é claro. Onde ela falhara como mulher? Como esposa? Onde? A escolha era quase que um protocolo, de tão óbvia que parecia.

Mas ele escolheu a outra.

E se foi.

Não sem antes deixar claro para Luma que ela não era nem metade da mulher que a outra era. Que ela não tinha nada do que ele esperava de uma esposa. Que ela simplesmente não servia. Afinal, anular-se e servir incondicionalmente, ser absolutamente funcional, nem sempre é o suficiente. Achava bom dar motivos e explicações claras. Ainda que fossem cruéis.

Depois da separação, Luma passava os dias tentando reinventar sua vida que antes girava em torno do marido. Mas era em vão. Viver sem ele era desesperador, insuportável. A vida apenas passava, sem um mote, um gancho, um pretexto que fosse que a justificasse. Relia os mesmos livros, arrumava as mesmas prateleiras, repensava as mesmas idéias, comia, respirava...

No fundo, ela esperava.

Esperava pelo dia em que ele voltaria arrependido, e os dois voltariam a ser felizes, dentro daquele paradigma subserviente de felicidade que ela montara para si. E como esse dia tardava a chegar, ela decidiu que iria atrás dele. Enlouquecera. Não havia sequer resquícios de dignidade naquela mulher, que clamava por uma reconciliação e, embora fosse bastante lisonjeador ter alguém se rastejando por ele daquela maneira, Luís Carlos já estava cansado daquilo e exigiu que ela parasse de procurá-lo. Não queria mais ela. Era difícil assim de entender?

— Um dia, Luca, — ela repetia, aos prantos — você vai perceber que eu fui a mulher que mais te amou. E vai perceber a porcaria de besteira que está fazendo. E nesse dia, eu sei que vou te perdoar. Porque o amor que eu sinto por você é maior do que qualquer outra coisa. E vai durar pra sempre.

Naquele momento, Luma foi abraçada por uma tristeza que parecia tão profunda quanto duradoura. Tão pesada que era possível tocá-la.

Foi a última vez que se viram.

...

É claro que Luís Carlos chegou primeiro. Adiantado. Luma foi pontual. Tinha os cabelos presos, amarrados no alto da cabeça e estava um tanto quanto elétrica. Acabara de sair de uma aula:

— Pintura? Não sabia que você pintava...

— Não pintava. Estou aprendendo...

— Não sabia que você gostava de pintar...

— Nem eu... Havia muita coisa sobre mim que eu não sabia...

A conversa fluía de maneira indolente. Aquela Luma, perdidamente apaixonada por ele, estava escondida aonde? Não havia nenhum sinal dela ali... A Luma amargurada, cheia de ódio e rancor por ter sido preterida e sacaneada também não apareceu. Que Luma era aquela afinal?

A Luma que superou.

Mas ele não sabia disto.

Cansou-se de falar de amenidades. Se nenhuma das duas aparecia por espontânea vontade, era hora de provocá-las. Talvez estivessem esperando por isso. Uma deixa. Logo a Luma, tão prática em outros tempos...

— Fala mais de você, Luma.

— O que quer saber?

— Tudo. Como está sua vida, o que tem feito, além da pintura?

E eis que então, ela falou. Falou da terapia, do trabalho, de suas flores, das viagens, falou de si mesma e da própria vida com uma paixão que fez com que parecesse a coisa mais espetacular do mundo. E aquilo causou um leve desconforto nele.

Porque descobrir que alguém tornou-se uma pessoa muito melhor e interessante sem você é destruidor.

No fundo ela sabia exatamente o que se passava ali. E não tinha porque não confessar: aguardou sim, por muito tempo por aquele momento. E algo dentro dela estava envaidado por ser a dona do jogo, ter o controle da situação, ver aquele homem olhando para ela como quem quer resolver um enigma, como se ela fosse a mulher mais interessante do mundo, simplesmente porque era indiferente a ele. Sim, porque se ainda fosse apaixonada ou o odiasse não haveria tanto interesse de sua parte. A máxima “pessoas gostam do que não tem” nunca fez tanto sentido. Mas aquilo não era um jogo, como na maioria das vezes em que as pessoas se comportam desta maneira. Ela realmente não o queria, não fazia diferença nenhuma para ela. Mas sentiu que precisava ir até o fim e esclarecer tudo. Não por si mesma. Mas por ele. Para que não ficasse com aquela dúvida pro resto da vida:

— E você, Luca? O que tem feito?

E eis que então, ele falou. Falou de como foi mágico para ele reencontrá-la, de como ela estava bonita, da separação litigiosa há seis meses, depois que ficou desempregado, de como aprendera a lavar e cozinhar, não por prazer, mas por necessidade, de como se sentia abandonado... E traído... E de como isso machucava.  Ia falando e dando-se conta de que não tinha feito nada que o auto-entusiasmasse. Ao contrário: sua vida estava uma porcaria.

Porque o mundo dá voltas. Pense, portanto, cinquenta vezes antes de ser um cretino.

— Você cuidava de mim, Luma... Jamais me abandonaria desse jeito, não é mesmo? Não é? Nós fomos tão felizes, lembra?

— Não, não fomos. Você era um purgante, e eu de uma dependência e submissão azucrinante. E assim, não há quem consiga ser feliz.

— Luma, eu sei que...

— Você não precisa se explicar e nem pedir desculpas de nada. Não há culpados, e isso não foi uma crítica, só uma constatação. Fomos vítimas de nós mesmos... É isso... 

Olhando para ele, ela percebia agora que aquele amor esteve sempre fadado ao insucesso. Desde o início. Meu Deus, onde esteve com a cabeça? Aquele homem não tinha absolutamente nada a ver com ela. E ela agradeceu a Deus o dia em que ele se foi. Porque só por isso ela deixou de ser uma vaca de presépio e se tornou o que sempre quis ser: uma mulher merecedora de amor.

Levantou-se, e ajeitava o vestido, preparando-se para sair, quando ele a chamou:

— Luma?

Ergueu a cabeça e o encarou. Depois de alguns segundos, Luís Carlos sorriu:

— É engraçado isso...

— O quê?

— Você disse que sempre me amaria, lembra?

— Lembro... Mas depois de tudo o que eu sofri... Só poderia cumprir essa promessa se fosse uma masoquista, Luís Carlos...

Despediu-se com um abraço. Levantou-se e foi para casa.

Porque nem todas as histórias têm finais felizes. Alguns desfechos são apenas coerentes.




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