segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Deuteronómio

Para Dona Rosa, a dona do meu coração insolente.

Entrou na reunião de pais aflita, esperando no mínimo uma hecatombe. Sentou-se naquela cadeirinha de criança apertada e ficou esperando pelo pior. O ambiente de uma sala de aula do curso da pré-escola pode ser bem hostil, quando nada ali combina com o temperamento do seu filho. Aquelas letras alegres penduradas no teto, aqueles lápis de cor espalhados, aqueles números falantes no mural. Tudo muito bonitinho, lúdico, didático... Disciplinado, isso, disciplinado era a palavra certa! Extremamente hediondo, isso sim... Seu filho jamais se submeteria àquilo, ah, não mesmo. Aguardou a professora se aproximar e começar a contar as tragédias, os desastres nucleares e ambientais, os ataques terroristas orquestrados por ele. Chegara atrasada, os pronunciamentos gerais já haviam terminado. Seria ele expulso da escola, processado na esfera cível e criminal? Poderia responder em liberdade? Só tinha cinco anos! Era esperar para ver.

As professoras de jardim eram tão felizes, ela pensou. Na certa não tinham filhos. Na certa disfarçavam muito bem na frente dos pais seus estados de nervos e frustrações ocasionados pelo magistério, fizeram dez anos de Tablado antes de ingressar na educação infantil. Devia ser pré-requisito obrigatório. Ou então, entorpeciam aquelas crianças com chazinhos, Diazepam ou o que quer que fosse todos os dias. Alguém que passa mais de quatro horas diárias com um grupo de vinte crianças entre cinco e seis anos definitivamente não podia ser feliz daquele jeito.

— Oi, mamãe! Vamos ver o que nosso meninão andou aprontando? — a palavra “aprontando”, embora dita de maneira engraçadinha, dentro desse conceito letárgico de felicidade das professoras do pré, soou como um aviso do que estava por vir. As duas mulheres que a ladeavam prestavam bastante atenção na conversa, fingindo estarem ocupadas com outras coisas, para não parecerem fofoqueiras. Mãe é um bicho competitivo, ela pensou, e já imaginava os comentários nas próximas festinhas de aniversário para as quais, obviamente, não seria convidada: O filho dela é um diabinho, a ovelha negra da classe, a culpa é dela que não soube educar. Colocar aquela criança na escola foi uma péssima idéia. Devia tê-lo posto numa jaula! Sua vida social estava acabada junto com a dele. A reunião de pais da pré-escola era sobretudo uma prova de fogo para aquelas mulheres. Quase um paredão do Big Brother. Ali era decidido quem estava dentro e quem deveria ser eliminado do convívio social por insubordinação, desvio de conduta, falta de afinidade... Ninguém queria ser a mãe da “criança problema”, muito menos ela.

Viram juntas os trabalhos de recorte e colagem, os desenhos, as obras de arte de massinha e as palavrinhas que ele escrevera, inclusive já cobria o próprio nome pontilhado. Fez elogios utilizando aqueles lugares comuns de educadores como cognição, motricidade. Disse que ele leria rápido, era muito listo. Isso ela já sabia. Nunca duvidou da perspicácia daquele menino. O calcanhar de Aquiles era mesmo o comportamento.

— Seu filho já é um rapazinho, mamãe. Ele me ajuda a apagar o quadro, junta os brinquedos, colabora nas atividades. Semana passada, a Júlia — duas mulheres levantaram as cabeças — a Júlia Melo — a mãe da outra Júlia respirou aliviada — mordeu e cuspiu ele... Sabe o que ele fez? Qualquer criança teria revidado, mas ele não. Me chamou para que eu resolvesse a situação.

Todas as mãe sorriram. Que gracinha de menino! Olhou atrás dos trabalhos e conferiu o nome do filho, para certificar-se de que estavam falando da mesma criança. Estavam. Uma mulher do outro lado da sala resmungou:

— Júlia Melo... Hunf, essa menina, hein... Adora morder os outros. Foi meu filho, um dia desses. Onde pensa que está? Num ringue de boxe? — A mãe da Júlia Melo ali, constrangida, ruborizada até. Sentiu que seu filho não era a criança problema daquela turma. Mas não estava ainda convencida, precisava assegurasse:

— Engraçado... Em casa ele é tão... — escolheu bem a palavra, para não assustar a professora — tão agitado... Meio genioso até. Esse comportamento absolutamente exemplar me pegou de surpresa...

— É normal que as crianças apresentem comportamentos um pouco diferentes, em lugares distintos, mamãe. — Um pouco diferentes? E o que dizer de comportamentos absolutamente díspares? — Mas eu tenho certeza que em casa, apesar de um pouco mais agitadinho, ela é um amor também!

— Claro, claro... Um amor! — sete babás em dois anos. Nenhuma conseguia suportá-lo. A última, ele lhe queimou os cabelos. E já estavam de sobre aviso da atual: se ele tornasse a lhe dar banho com água do vaso sanitário, ela pediria as contas. — Meu filho é simplesmente um amor, graças ao bom Deus! — emitiu essa última frase como quem convence alguém de uma mentira. Mas nem a ela pareceu persuasivo o suficiente.

Não podia negar que saiu da reunião triunfante e três quilos mais magra — nervosismo e ansiedade engordam. Mas havia algo de truncado ali: Seu filho, que em casa não conhecia limites e tocava o rebú sem vergonha nem culpa alguma, era simplesmente o menino mais cute-cute da classe na escola. Parira um esquizofrênico ou o quê? Era muito novo para fazer terapia? Será que havia alguma coisa na internet sobre esse tipo de comportamento, “dupla personalidade infantil”, anotou para jogar no Google quando chegasse a casa.

Sempre foi assim. Como ela podia imaginar que carregava um pequeno alvoroço na barriga? As traquinagens dele não eram deliciosas, como as outras mães relatavam. Delicioso uma ova! A maternidade, ao menos para ela, era matar um leão a cada segundo. E era um arteiro de vanguarda: sempre inovava, provocava, surpreendia, armava verdadeiros motins. Pelo menos de tédio ela não morreria, disso não podia reclamar... E nada resolvia, nem uns tabefes de vez em quando. Preferia apanhar, aliás. Ficar de castigo era enfadonho demais para ele, mas nem isso parecia levá-lo a algum tipo de reflexão.

Ao chegar a casa, a babá já tinha um séquito de queixas a arrolar, é claro. A expressão “uma lambança de chocolate” era preocupante, e ela decidiu que seria o primeiro item da lista a ser resolvido:

— Quem disse que você podia comer chocolate antes do almoço? E pela orelha?

— O que a tia falou, mãe? — Odiava essa mania dele de ignorá-la. Herdou do pai, na certa. Recolheu o chocolate e começou a limpá-lo.

— Ela disse que você é um anjo de candura...

— Anjo de quê?

— Educado, ela disse que você é educado. Que não apronta nada, se comporta muito bem, e ainda é um exemplo de bom menino pro coleguinhas...

— Viu só, mamãe... — sorriu como quem já sabia a resposta do que havia perguntado. Era mais descarado que um advogado de porta de cadeia. Mas havia um quê de cumplicidade naquele sorriso. Como se ele soubesse que não poderia desapontá-la. Não na escola, não diante dos outros.

— Olha pra mamãe. Seria muito pedir pra você ser sempre assim? Obediente?

Olharam-se por alguns segundos. Seria muito pedir a alguém que fosse sempre da mesma maneira? Ela era da mesma maneira sempre? Alguém comporta-se da mesma maneira sempre? Parira um projeto de gente ou um robô?

— Posso ver televisão? — respondê-la com outra pergunta tornara-se um hábito extremamente irritante. Ela o liberou, pois viu que não tinha jeito, mas não sem antes reforçar seus pedidos de obediência às regras. Todos os dias, aliás, antes de sair para o trabalho, ela cumpria este ritual. Como numa espécie de ladainha. Que ele já conhecia de cor. Aliás, “regras”, era uma palavra que fazia parte da vida daquela criança desde muito cedo. Falou papai, mamãe, água e depois regras. Conhecia, mas ignorava. Pareciam-lhe insultantes. Mas e essa agora de obedecê-las fielmente na escola? Ela estava realmente cansada. E olha que eram só os primeiros cinco anos:

— Meu filho, olha para a mamãe! Você quer me enlouquecer? Será que eu não repeti o suficiente o que pode e o que não pode ser feito, será que você não conhece bem as regras? Será que você não pode se comportar em casa e na escola da mesma maneira, meu filho?

— Eu conheço bem, ué... E é por isso que eu sei quando não preciso obedecer. Tchau, vou jogar bola...

Ficou estarrecida ao ouvir aquilo. Encarou o filho como quem encara a um ET.

— Que foi, mãe?

Tinha medo, ojeriza até, daquela criança, aquela pequena peste, se tornar um cínico ao crescer. Mas o que ela não sabia é que as mães são assim mesmo. Não contentes em ensinar a vida, insistem em ditar as regras do jogo que é viver. Só que moldar um ser humano é muito mais complexo do que parece. E, às vezes, as máscaras pelas quais o convívio social clama, começam a surgir muito cedo... Obedecer a regras por obedecer não faz o menor sentido. E as crianças não são tão otárias quanto parecem.

— Mamãe...

— O que é?

— Eu te amo!

Deu um beijo nela e saiu a fazer suas peraltices.

Um comentário:

  1. é senhor, vc está muito bom hein, logo alguem terá trabalho com vc, rs... Sam

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